O
fenômeno
Tem séries que não
acabam nunca enquanto existem aquelas que, por mais que sejam boas, contam com
poucos episódios e se perdem no tempo. Às vezes é até melhor assim, as boas
ideias da premissa original acabam sendo corrompidas em nome da audiência, o
que, por sorte, não é o caso de A família Dinossauro. Exibida por aqui de 92 A
94, tempo quase simultâneo à sua produção, exibição e encerramento em seu país
de origem, a Família Dinossauro, juntamente com Os Simpsons, vendia a ideia de
uma produção destinada a todas as idades, explorando o cotidiano de uma família
como qualquer outra, cada membro com suas peculiaridades, de fácil
identificação ao público. Mas enquanto Os Simpsons estão aí até hoje em sua
produção mais simples e de popularidade cada vez mais global, a família de Dino
e cia só não se perdeu no tempo por ser uma série um tanto diferente, pioneira
em sua época, levando o nome de Jim Henson e sua produtora na concepção de
materiais utilizados em cena, o recurso que combinava atores em vestimentas especiais, fantoches e tecnologia animatrônica, animados por computador. Por aí já dá para imaginar a
trabalheira que era dar vida a cada personagem em cada episódio, e o quanto
isso era caro. Mas fazendo justiça, o seriado era muito mais que isso, a
história contava bastante, com personagens carismáticos, muito humor negro e
crítica social, e inovação ao retratar o cotidiano de uma família pré
histórica na qual os ´´lagartos terríveis`` eram considerados seres pensantes,
fazendo uma analogia aos dias atuais da época, e que mesmo hoje em dia continuam iguais, pois o seriado envelheceu bem, nem parece ter sido produzido há
tanto tempo. O curioso é que, se aqui temos ´´Família`` já no titulo, no
original a série não dá tantas pistas do que se trata a premissa, batizada
apenas de Dinosaurs. Mesmo os personagens centrais, nada de Silva Sauro, nada
de Dino, nada que lembre sua natureza reptiliana pré-histórica. O nome do
patriarca é Earl, e o nome da família é Sinclair, talvez tenha sentido dentro
de algum contexto norte-americano, ou não. De qualquer maneira, sabemos que as
versões brasileiras para títulos e traduções costumam serem as melhores.
Era interessante ver
que, ao alcançar grande popularidade, a série passava a não ser mais um
programa semanal, indo de vez para as manhãs diárias da Globo misturando-se aos
desenhos animados da programação infantil, isso perto do almoço, momento em que
os adultos costumavam estar também presentes na preparação da ida das crianças
para a escola, e acabavam tendo sua atenção despertada por essa família
pré-histórica. Em terras brasileiras, sem dúvida o programa inicialmente era considerado
um produto infantil, lembro que na época o país foi tomado por uma tal de
´´Babymania`` nome dado à modinha que o dinossaurinho rosa, caçula da família,
atingia as crianças com seus brinquedos, roupas, acessórios de cama e
colecionáveis. Um personagem infantil tão carismático e de fácil apego
emocional, paródias de programas de televisão da época em um tom mais cômico, dinossauros
se comportando como gente e um visual que lembrava bonecos de filmes dos
Muppets e mesmo os cães da TV Colosso, realmente levavam a série para o
reconhecimento de mais um conteúdo para os baixinhos, mas quem assistiu a série
depois de ter crescido ou quem já era adulto na época, sabe que de infantil não
tinha quase nada. Os temas centrais de cada episódio são muito bem trabalhados,
envolve questões e termos super atuais já naquela época, como direitismo e
esquerdismo, manipulação de massa, consumismo, o controle que a mídia exerce
sobre nós, feminismo, fundamentos do trabalho, drogas entre os adolescentes, contestação política, ecologia,
assédio moral no trabalho, xenofobismo, liberdade de expressão, alimentação
carnívora e antinatural se contrapondo à alimentação saudável, novas
tecnologias, capitalismo desmedido, noções de história, geologia e até mesmo
vida sexual. O que devemos lembrar que todas essas questões eram veladas, não
era nada, digamos assim, escancarado, nada de lição de moral no final, apenas
os mais atentos entendiam e começavam a se questionar sobre cada acontecimento
do episódio, ou seja, os adultos. Se visto nos dias de hoje, a única diferença
é que no lugar da televisão, tecnologia tão consumida pela família, teríamos
também a presença de internet, celulares e tablets,
inclusive nas mãos do Baby Sauro, já que a alienação era amplamente abordada em
cada história. Tanta criatividade nesse inteligente seriado acabava o tornando
um item popular igualmente entre os adultos, melhor que isso, os adultos da
série, não sendo meros coadjuvantes, passavam a fazer parte do imaginário das
crianças, não mais apenas o Baby com seu irritante bordão exaustivamente
reproduzido nas escolas e em brincadeiras infantis ´´Não é a mamãe!``. Qual
criança da época não queria ter um pai igual o Dino da Silva Sauro, por mais
que, como outros pais de séries da época, fosse recheado de maus exemplos? Apesar
de irresponsável Dino era um pai de família bem melhor que muitos por aí,
marido amoroso, paciente com os filhos e um grande exemplo de proletário,
disposto a aceitar tudo para manter uma vida razoavelmente confortável em sua
casa. Era fácil identificar membros da própria família com os personagens,
tanto que qualquer item que levasse a imagem de qualquer um deles passou a ser
fruto de desejo e ostentação. Foram lançados gibis, material escolar, LP com
canções em português pela Xuxa Discos, biscoito Passatempo recheado, álbum de
figurinhas, chicletes, artigos para festas, bonecos e diversos outros produtos, originais e piratas. Na mesma
época, aproveitando o embalo da moda já lançada por essa família, veio outros
produtos que exploravam a figura histórica de dinossauros, como o filme
Jurassic Park e o seriado Power Rangers, cujos heróis representavam poderes de
animais pré-históricos, que também renderam vários produtos, sem contar o
extinto chocolate Surpresa, que oferecia de brinde figurinhas com imagens de
dinossauros e uma resumida das características de cada espécie em seu verso.
Crianças passavam a se interessar pelos répteis gigantes, e os adultos
redescobriam uma curiosidade e passavam a ter noções básicas de paleontologia.
Porém, a família Silva Sauro, dês de sempre fictícia, não apresentava com
precisão histórica sua natureza. Sabemos que Dino é um megalossauro, e a Fran,
matriarca da família, é uma alossauro, mas os filhos, e a própria mãe de Fran,
parecem ser de espécies diferente, em nada combinando entre si. Roy, melhor
amigo de Dino, é um tiranossauro, e senhor Richfield, chefe inescrupuloso de
Dino, é um tríceratops, só que essa seria uma espécie vegetariana (se bem que,
mais recentemente, soubemos que essa espécie sequer existiu, mas...) e a
despeito de sua natureza, Richfield é um terrível predador. Mesmo assim, sabendo
mesclar fantasia, humor e alguns pontos realistas, principalmente ao remeter à
realidade humana social, o seriado conseguiu lembrar fatos do período em que se
situava, a origem dos continentes, o princípio de sua separação, a era glacial,
e a inevitável extinção das espécies nas quais pertenciam, retratada com justiça
no episódio final, aquele que chocou todo mundo e foi banido em alguns países,
mas que você pode encontrar na internet.
Pontos
do seriado.
Tudo bem, a produção
do seriado era dispendiosa por contar com recursos tão modernos para a época,
isso sem contar com o esforço e o trabalho da equipe técnica para casar tudo
isso, o que pode ter contribuído para a série ter poucos episódios se comparada
a outras produções semelhantes. A série tentava ser econômica a seu modo, personagens
como Zilda e Richfield permaneciam a maior parte do tempo sentados, o que
poupava esforços técnicos, eram usados planos fechados para não ser preciso criar cenários
demasiado grandes e de muita profundidade, bonecos eram reaproveitados para vários
personagens e omitia-se alguns detalhes, como o carro da família, que apareceu
em poucos episódios e em soluções práticas, como mostrando apenas o interior do
veículo. Quem assistiu a série deve ter visto alguns personagens reproduzidos com
a mesma aparência, isso acontecia porque para a criação de figurantes a
produção mudava apenas as roupas de velhos conhecidos, mas que não eram da
família original, o que contava com nossa aceitação. Inconscientemente
imaginávamos apenas que eram indivíduos da mesma espécie. Inclusive era
possível mudar o sexo pela troca de vestuário e pela voz da dublagem. Era
assim com os colegas de trabalho de Dino, que ´´viraram``, em outros episódios,
médicos, juízes, fotógrafos, ´´Mago do Trabalho``, namorados dos filhos adolescentes, entregadores,
analistas, professores, populares e demais figurantes, inclusive o próprio Baby
em sua versão adulta. Falando nisso, é quase deixado claro, em um determinado
episódio, que Baby não é filho de Fran e Dino, tudo não passou de um acaso por
uma troca de ovos, fato esse que Salomão, o Grande, conseguiu fazer não
importar. Apenas o elenco principal não contava para outras participações como
outros personagens, caso de Dino, Zilda, Fran, Bobby, Charlene, Baby, Sr Richfield,
Mônica Invertebrada (que engenhosamente contava apenas com sua cabeça e seu
pescoço comprido, em poucas vezes aparecendo seu corpo em uma panorâmica
longínqua da casa da família), Roy e Carlão, melhor amigo de Bobby. Só em
casos excepcionais podíamos vê-los como outros personagens, como quando aparece
a irmã idêntica de Dino e quando a família recebe a visita do possível
autêntico filho de Dino e Fran, no caso um Baby verde, menos travesso do que o
que estávamos acostumados.
Como tudo que é bom
dura pouco, em 94 os produtores do seriado decidiram que já era hora de
terminá-lo, o que talvez fosse o tempo certo, antes que começasse a perder a
graça. Para isso decidiram um final um tanto comovente, mas interessante em
termos de história, que seria a extinção dos dinossauros já na geração dessa
família querida que aprendemos a amar. Mesmo amenizado com o
humor e a alegoria tão característicos dessa série, o épico episódio final traz
nas entrelinhas a mensagem de que o capitalismo, o consumo desmedido e o
desperdício de nossos recursos naturais podem simplesmente nos levar ao fim de
tudo isso, o que acaba fazendo não valer à pena tais esforços, e que o melhor a
fazer é usufruirmos tudo de forma natural, aceitando o preço sem querer
dar um passo maior que as pernas. É incrível pensar que um seriado retratado em
tal época e considerado apenas um sitcom ou um simples programa infantil, pudesse
trazer mensagens tão profundas para os dias recentes, e que, aliás, faz muito
mais sentido nos dias ainda mais atuais, onde tudo tem andado em um ritmo cada
vez mais desordenado, nos fazendo ter uma perspectiva não muito boa do futuro.
Será que, tal como os répteis gigantes pré-históricos, nós humanos poderíamos ter um destino semelhante? Bem, seriados como esse são raros hoje em
dia, e talvez por isso não mais exista. Estava bem à frente de seu tempo, o que se torna irônico em vários sentidos. Hoje ele
seria ajustado para se tornar uma comédia mais leve e sem mensagens políticas
ou ecológicas. Hoje o ´´canibalismo`` e o humor negro seria tratado como algo
indigesto para a TV aberta, onde um certo bebê Yoda não conseguiu ser tratado
com tanta naturalidade ao passar aos olhos pseudo conservacionistas, gerando
militância em meios midiáticos. Você pode não lembrar ou sequer ter percebido,
mas sim, A Família Dinossauro previu tudo isso.