segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

A Família Dinossauros - Nem parece que foi há tanto tempo

 



O fenômeno

 

Tem séries que não acabam nunca enquanto existem aquelas que, por mais que sejam boas, contam com poucos episódios e se perdem no tempo. Às vezes é até melhor assim, as boas ideias da premissa original acabam sendo corrompidas em nome da audiência, o que, por sorte, não é o caso de A família Dinossauro. Exibida por aqui de 92 A 94, tempo quase simultâneo à sua produção, exibição e encerramento em seu país de origem, a Família Dinossauro, juntamente com Os Simpsons, vendia a ideia de uma produção destinada a todas as idades, explorando o cotidiano de uma família como qualquer outra, cada membro com suas peculiaridades, de fácil identificação ao público. Mas enquanto Os Simpsons estão aí até hoje em sua produção mais simples e de popularidade cada vez mais global, a família de Dino e cia só não se perdeu no tempo por ser uma série um tanto diferente, pioneira em sua época, levando o nome de Jim Henson e sua produtora na concepção de materiais utilizados em cena, o recurso que combinava atores em vestimentas especiais, fantoches e tecnologia animatrônica, animados por computador. Por aí já dá para imaginar a trabalheira que era dar vida a cada personagem em cada episódio, e o quanto isso era caro. Mas fazendo justiça, o seriado era muito mais que isso, a história contava bastante, com personagens carismáticos, muito humor negro e crítica social, e inovação ao retratar o cotidiano de uma família pré histórica na qual os ´´lagartos terríveis`` eram considerados seres pensantes, fazendo uma analogia aos dias atuais da época, e que mesmo hoje em dia continuam iguais, pois o seriado envelheceu bem, nem parece ter sido produzido há tanto tempo. O curioso é que, se aqui temos ´´Família`` já no titulo, no original a série não dá tantas pistas do que se trata a premissa, batizada apenas de Dinosaurs. Mesmo os personagens centrais, nada de Silva Sauro, nada de Dino, nada que lembre sua natureza reptiliana pré-histórica. O nome do patriarca é Earl, e o nome da família é Sinclair, talvez tenha sentido dentro de algum contexto norte-americano, ou não. De qualquer maneira, sabemos que as versões brasileiras para títulos e traduções costumam serem as melhores.


Era interessante ver que, ao alcançar grande popularidade, a série passava a não ser mais um programa semanal, indo de vez para as manhãs diárias da Globo misturando-se aos desenhos animados da programação infantil, isso perto do almoço, momento em que os adultos costumavam estar também presentes na preparação da ida das crianças para a escola, e acabavam tendo sua atenção despertada por essa família pré-histórica. Em terras brasileiras, sem dúvida o programa inicialmente era considerado um produto infantil, lembro que na época o país foi tomado por uma tal de ´´Babymania`` nome dado à modinha que o dinossaurinho rosa, caçula da família, atingia as crianças com seus brinquedos, roupas, acessórios de cama e colecionáveis. Um personagem infantil tão carismático e de fácil apego emocional, paródias de programas de televisão da época em um tom mais cômico, dinossauros se comportando como gente e um visual que lembrava bonecos de filmes dos Muppets e mesmo os cães da TV Colosso, realmente levavam a série para o reconhecimento de mais um conteúdo para os baixinhos, mas quem assistiu a série depois de ter crescido ou quem já era adulto na época, sabe que de infantil não tinha quase nada. Os temas centrais de cada episódio são muito bem trabalhados, envolve questões e termos super atuais já naquela época, como direitismo e esquerdismo, manipulação de massa, consumismo, o controle que a mídia exerce sobre nós, feminismo, fundamentos do trabalho, drogas entre os adolescentes, contestação política, ecologia, assédio moral no trabalho, xenofobismo, liberdade de expressão, alimentação carnívora e antinatural se contrapondo à alimentação saudável, novas tecnologias, capitalismo desmedido, noções de história, geologia e até mesmo vida sexual. O que devemos lembrar que todas essas questões eram veladas, não era nada, digamos assim, escancarado, nada de lição de moral no final, apenas os mais atentos entendiam e começavam a se questionar sobre cada acontecimento do episódio, ou seja, os adultos. Se visto nos dias de hoje, a única diferença é que no lugar da televisão, tecnologia tão consumida pela família, teríamos também a presença de internet, celulares e tablets, inclusive nas mãos do Baby Sauro, já que a alienação era amplamente abordada em cada história. Tanta criatividade nesse inteligente seriado acabava o tornando um item popular igualmente entre os adultos, melhor que isso, os adultos da série, não sendo meros coadjuvantes, passavam a fazer parte do imaginário das crianças, não mais apenas o Baby com seu irritante bordão exaustivamente reproduzido nas escolas e em brincadeiras infantis ´´Não é a mamãe!``. Qual criança da época não queria ter um pai igual o Dino da Silva Sauro, por mais que, como outros pais de séries da época, fosse recheado de maus exemplos? Apesar de irresponsável Dino era um pai de família bem melhor que muitos por aí, marido amoroso, paciente com os filhos e um grande exemplo de proletário, disposto a aceitar tudo para manter uma vida razoavelmente confortável em sua casa. Era fácil identificar membros da própria família com os personagens, tanto que qualquer item que levasse a imagem de qualquer um deles passou a ser fruto de desejo e ostentação. Foram lançados gibis, material escolar, LP com canções em português pela Xuxa Discos, biscoito Passatempo recheado, álbum de figurinhas, chicletes, artigos para festas, bonecos e diversos outros produtos, originais e piratas. Na mesma época, aproveitando o embalo da moda já lançada por essa família, veio outros produtos que exploravam a figura histórica de dinossauros, como o filme Jurassic Park e o seriado Power Rangers, cujos heróis representavam poderes de animais pré-históricos, que também renderam vários produtos, sem contar o extinto chocolate Surpresa, que oferecia de brinde figurinhas com imagens de dinossauros e uma resumida das características de cada espécie em seu verso. Crianças passavam a se interessar pelos répteis gigantes, e os adultos redescobriam uma curiosidade e passavam a ter noções básicas de paleontologia. Porém, a família Silva Sauro, dês de sempre fictícia, não apresentava com precisão histórica sua natureza. Sabemos que Dino é um megalossauro, e a Fran, matriarca da família, é uma alossauro, mas os filhos, e a própria mãe de Fran, parecem ser de espécies diferente, em nada combinando entre si. Roy, melhor amigo de Dino, é um tiranossauro, e senhor Richfield, chefe inescrupuloso de Dino, é um tríceratops, só que essa seria uma espécie vegetariana (se bem que, mais recentemente, soubemos que essa espécie sequer existiu, mas...) e a despeito de sua natureza, Richfield é um terrível predador. Mesmo assim, sabendo mesclar fantasia, humor e alguns pontos realistas, principalmente ao remeter à realidade humana social, o seriado conseguiu lembrar fatos do período em que se situava, a origem dos continentes, o princípio de sua separação, a era glacial, e a inevitável extinção das espécies nas quais pertenciam, retratada com justiça no episódio final, aquele que chocou todo mundo e foi banido em alguns países, mas que você pode encontrar na internet.

 



Pontos do seriado.

 

Tudo bem, a produção do seriado era dispendiosa por contar com recursos tão modernos para a época, isso sem contar com o esforço e o trabalho da equipe técnica para casar tudo isso, o que pode ter contribuído para a série ter poucos episódios se comparada a outras produções semelhantes. A série tentava ser econômica a seu modo, personagens como Zilda e Richfield permaneciam a maior parte do tempo sentados, o que poupava esforços técnicos, eram usados planos fechados para não ser preciso criar cenários demasiado grandes e de muita profundidade, bonecos eram reaproveitados para vários personagens e omitia-se alguns detalhes, como o carro da família, que apareceu em poucos episódios e em soluções práticas, como mostrando apenas o interior do veículo. Quem assistiu a série deve ter visto alguns personagens reproduzidos com a mesma aparência, isso acontecia porque para a criação de figurantes a produção mudava apenas as roupas de velhos conhecidos, mas que não eram da família original, o que contava com nossa aceitação. Inconscientemente imaginávamos apenas que eram indivíduos da mesma espécie. Inclusive era possível mudar o sexo pela troca de vestuário e pela voz da dublagem. Era assim com os colegas de trabalho de Dino, que ´´viraram``, em outros episódios, médicos, juízes, fotógrafos, ´´Mago do Trabalho``, namorados dos filhos adolescentes, entregadores, analistas, professores, populares e demais figurantes, inclusive o próprio Baby em sua versão adulta. Falando nisso, é quase deixado claro, em um determinado episódio, que Baby não é filho de Fran e Dino, tudo não passou de um acaso por uma troca de ovos, fato esse que Salomão, o Grande, conseguiu fazer não importar. Apenas o elenco principal não contava para outras participações como outros personagens, caso de Dino, Zilda, Fran, Bobby, Charlene, Baby, Sr Richfield, Mônica Invertebrada (que engenhosamente contava apenas com sua cabeça e seu pescoço comprido, em poucas vezes aparecendo seu corpo em uma panorâmica longínqua da casa da família), Roy e Carlão, melhor amigo de Bobby. Só em casos excepcionais podíamos vê-los como outros personagens, como quando aparece a irmã idêntica de Dino e quando a família recebe a visita do possível autêntico filho de Dino e Fran, no caso um Baby verde, menos travesso do que o que estávamos acostumados.




Como tudo que é bom dura pouco, em 94 os produtores do seriado decidiram que já era hora de terminá-lo, o que talvez fosse o tempo certo, antes que começasse a perder a graça. Para isso decidiram um final um tanto comovente, mas interessante em termos de história, que seria a extinção dos dinossauros já na geração dessa família querida que aprendemos a amar. Mesmo amenizado com o humor e a alegoria tão característicos dessa série, o épico episódio final traz nas entrelinhas a mensagem de que o capitalismo, o consumo desmedido e o desperdício de nossos recursos naturais podem simplesmente nos levar ao fim de tudo isso, o que acaba fazendo não valer à pena tais esforços, e que o melhor a fazer é usufruirmos tudo de forma natural, aceitando o preço sem querer dar um passo maior que as pernas. É incrível pensar que um seriado retratado em tal época e considerado apenas um sitcom ou um simples programa infantil, pudesse trazer mensagens tão profundas para os dias recentes, e que, aliás, faz muito mais sentido nos dias ainda mais atuais, onde tudo tem andado em um ritmo cada vez mais desordenado, nos fazendo ter uma perspectiva não muito boa do futuro. Será que, tal como os répteis gigantes pré-históricos, nós humanos poderíamos ter um destino semelhante? Bem, seriados como esse são raros hoje em dia, e talvez por isso não mais exista. Estava bem à frente de seu tempo, o que se torna irônico em vários sentidos. Hoje ele seria ajustado para se tornar uma comédia mais leve e sem mensagens políticas ou ecológicas. Hoje o ´´canibalismo`` e o humor negro seria tratado como algo indigesto para a TV aberta, onde um certo bebê Yoda não conseguiu ser tratado com tanta naturalidade ao passar aos olhos pseudo conservacionistas, gerando militância em meios midiáticos. Você pode não lembrar ou sequer ter percebido, mas sim, A Família Dinossauro previu tudo isso.